Recentemente, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) debruçou-se mais uma vez sobre o conceito de exportação de serviços para fins de incidência de ISS, agora nos autos do REsp nº 2.075.903. Nesse julgado, como será melhor explicado a seguir, uma empresa brasileira foi contratada por um laboratório farmacêutico domiciliado no exterior, para coletar amostras, fazer exames laboratoriais e compilar os dados coletados.
O resultado da compilação seria utilizado por esse laboratório estrangeiro no desenvolvimento de um medicamento. Muito embora a decisão já tenha sido bastante criticada por um número considerável de estudiosos do direito tributário, pretendemos engrossar esse coroa partir de um enfoque teleológico, isto é, da compreensão da finalidade da imunidade às exportações.
Faremos isso sem temer o debate com aqueles que veem no direito tributário uma entidade divorciada do mundo concreto, de sua finalidade de regular condutas e de criar obrigações a partir de um contexto social. Muito embora reconheçamos boas intenções em todos aqueles que defendem rigor científico, acreditamos que rechaçar o viés econômico do do direito tributário representa verdadeira distorção desse rigor científico, conduzindo a um patológico quadro de alienação conceitual, que pode levar a desfecho tão teratológico quanto o do REsp nº 2.075.903, ora objeto da nossa análise.
Propomos aqui, então, uma reflexão baseada na premissa de que o Estado, no capitalismo, tende a proteger seus nacionais, provedores de bens e serviços. Essa proteção se dá a partir de tratamento tributário favorecido para que os provedores nacionais vendam seus produtos e serviços a adquirentes estrangeiros, desonerando exportações. Por outro lado, pressupondo que o resto do mundo fará a mesma coisa, o Estado protege os seus provedores nacionais, taxando as importações.
Na prática, o raciocínio é mais ou menos esse: se o Estado de destino cobra tributo de 10% sobre a venda interna de determinado bem ou serviço, também as importações desses bens e serviços deverão ser taxadas a pelo menos 10%, com base no pressuposto de que o Estado de origem, para estimular exportações, deu tratamento tributário favorecido ao seu nacional. O Estado de origem, aliás, deu esse tratamento tributário favorecido ao seu nacional no mesmo pressuposto de que o Estado de destino iria tributar a importação. A essa dinâmica dá-se o nome de princípio da tributação no destino.
Não é possível, no entanto, fazer análise casuística, de modo a estabelecer cobrança de tributo a depender das circunstâncias específicas de cada operação ou de cada país para onde o produto ou serviço está sendo exportado ou de onde está sendo importado. A única forma de tornar o tratamento tributário isonômico entre o provedor nacional e o estrangeiro é seguir a regra da inversão: cobrar tributo na importação, quando, no caso inverso, se esse serviço estiver sendo prestado por um provedor nacional a um adquirente estrangeiro em condições análogas, o tributo na exportação não for cobrado. Da mesma forma, cobrar tributo na exportação quando, no caso inverso, se o tomador for um provedor nacional, não houver incidência de tributo.
E caso essa regra não seja observada, o prejudicado será necessariamente o provedor nacional, seja porque não se cobraria tributo na importação de produto ou serviço que é tributado se o provedor for nacional, de modo que seria mais barato importar o produto ou serviço do que contratá-lo de provedor local, seja porque seria tributado um serviço de provedor nacional que vai ser também tributado pelo Estado de destino, de modo que o provedor local estaria sendo submetido a dupla tributação, tornando o produto ou serviço brasileiro mais caro do que aquele entregue por provedores de outros países do mundo.
Esse viés teleológico, portanto, revela se a lei (em sentido estrito) e se a interpretação da norma nos casos concretos realiza ou contraria os fundamentos e objetivos do Estado Brasileiro, como a soberania, os valores sociais do trabalho, da livre iniciativa e da livre concorrência.
Fixada a premissa, vamos ao caso concreto, analisado pelo STJ no julgamento do REsp nº 2.075.903. Segundo o acórdão, “os serviços prestados pela recorrente são os de exame, pesquisa, coleta, compilação e fornecimento de dados e informações de produtos farmacêuticos, medicamentos e relacionados à saúde e correlatos. O resultado desses serviços é enviado para o exterior para que [sic] as empresa estrangeira, utilizando tais dados, deem prosseguimento ao desenvolvimento clínico dos medicamentos.”. Ainda segundo o acórdão, “os resultados dos serviços são verificados pela própria empresa nacional, sindicando inclusive a sua conclusão visando a percepção da contraprestação ajustada”.
Ou seja, uma farmacêutica estrangeira contrata no Brasil um serviço de coleta de dados para que essa farmacêutica estrangeira possa desenvolver lá fora mesmo um medicamento. Segundo o STJ, o serviço contratado começa a ser prestado e termina de ser prestado aqui mesmo no Brasil, pelo que não se trata de exportação, muito embora esse levantamento de dados, se for tirado do contexto da pesquisa realizada pelo laboratório estrangeiro, não tenha qualquer função ou valor prático. Para justificar essa posição, defende-se no acórdão que a “fruição dos serviços é uma etapa que não diz respeito aos serviços realizados no país, mas à empresa estrangeira que, utilizando os serviços contratados, vai desenvolver o estudo clínico dos medicamentos”.
O raciocínio, no entanto, é absolutamente falho, já que, se for esperado que a prestação do serviço se inicie e se conclua fora do país, não se está tratando de imunidade, já que o instituto pressupõe a ocorrência de um fato potencialmente tributável, mas que a Constituição expressamente retira do campo de incidência da norma tributária. Um serviço prestado integralmente lá fora sequer poderia ser objeto de tributação, pelo que não demandaria qualquer espécie cláusula imunizante. Mas esse é o aspecto já exaustivamente tratado por diversos outros autores, que não pretendemos revolver. Como antecipado, nosso objetivo aqui é a análise teleológica, pelo que retomamos a ordem de ideias anterior: cobra-se tributo sobre importação, na premissa de que esse tributo não foi cobrado na origem; não se cobra na exportação, no pressuposto de que o tributo será cobrado no destino. Daí a pergunta: se uma farmacêutica nacional estivesse contratando um serviço similar no exterior, estaria sujeita à incidência de ISS aqui no Brasil?
Ainda que, em nosso sentir, tivéssemos diversos argumentos para defender a não incidência, não temos dúvida de que os municípios exigiriam o ISS se os serviços de coleta fossem importados por um laboratório nacional, inclusive com arrimo no entendimento do Poder Judiciário. Prova disso está no julgamento ocorrido no âmbito do STF nos autos do Recurso Extraordinário 688.223, com repercussão geral, que considerou constitucional o artigo 1º, §1º, da Lei Complementar nº 116/2003, pelo que procedente a incidência de ISS sobre o licenciamento e a cessão de programas de computador provenientes do exterior. Nesse julgado, o provedor estrangeiro desenvolveu o software no país de origem e forneceu esse software pronto ao adquirente no Brasil.
E o STF entendeu que sim, que deveria haver incidência do ISS nesse caso, tanto em respeito ao princípio da isonomia — já que os prestadores estabelecidos no Brasil teriam seus softwares taxados nas vendas internas — quanto ao princípio do destino na tributação internacional.
Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que “vedar a incidência do ISS sobre importação de serviços viola o princípio da isonomia, haja vista que apenas os serviços prestados por empresas situadas no território nacional seriam tributados. Observa-se, ainda, que favorecer a prestação de serviços estrangeiros, desonerando-os do ISS, viola também o princípio da livre concorrência, basilar da atividade econômica (artigo 170, IV, da CF/1988)”. E sobre o princípio da tributação no destino, esclareceu o ministro Dias Toffoli que, “a partir do mencionado preceito, a tributação dos bens ou serviços exportados ocorram no país em que são eles consumidos. Nessa toada, o país exportador deixa de os tributar e o país importador exerce, sobre os bens ou serviços importados, a competência tributária pertinente. É disso que se trata no referido dispositivo constitucional e na disciplina presente na LC nº 116/03”.
Ora, está claro que o Poder Judiciário entregou ao contribuinte soluções manifestamente antagônicas. Na exportação, pouco importa a fruição, isto é, pouco importa se o serviço de coleta realizado no Brasil se destinou exclusivamente ao tomador no exterior, que estava desenvolvendo um medicamento. O que vale é que a coleta, o exame e a compilação de dados aconteceram aqui. Então o serviço terminou aqui e aqui deve haver tributação, não havendo que se falar em exportação.
Mas, no outro caso, na importação da licença de software, o Judiciário diz que vale o princípio do destino. Ou seja, muito embora o software tenha sido projetado, desenvolvido e compilado lá fora, ou seja, que o serviço tenha sido prestado lá fora, fato é que o destino da operação foi o adquirente brasileiro, com fruição 100% em território brasileiro. Então deve haver tributação.
Evidentemente essas duas soluções não podem coexistir. Também evidente que o entendimento do STJ deve ser superado para garantir a imunidade à exportação dos serviços. Não apenas em respeito aos primados da isonomia, da livre concorrência e da livre iniciativa. Mas também — e principalmente — porque a tributação da exportação nesse caso fulmina a competitividade do provedor de serviços nacional frente aos estrangeiros, inviabilizando a sua contratação por tomadores domiciliados no exterior.
E nem se alegue, como já dissemos anteriormente, que os aspectos econômicos são irrelevantes para a incidência tributária. Não apenas os aspectos econômicos têm relevantíssimo valor jurídico — já que estão relacionados aos princípios informadores, aos próprios objetivos do Estado brasileiro — como ainda demonstram que as discussões tributárias não são simples e herméticos debates sintáticos. Elas interferem diretamente na empregabilidade, na dignidade e, em suma, na vida das pessoas.
A hermenêutica tributária de antolhos, que leva em consideração a norma tributária seca e a interpretação ultra restritiva das limitações ao poder de tributar, para além do patológico quadro de alienação conceitual, conduz o Estado a um verdadeiro autoflagelo: sob o pretexto da falsa sensação de segurança proporcionada pela tacanha ortodoxia positivista, ferem-se os objetivos da República, assim como os direitos e o bem-estar daqueles que a lei justamente visa proteger.
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Por Leonardo Mazzillo, advogado em São Paulo, sócio do escritório WFaria Advocacia, pós-Graduado em Direito Tributário e pós-Graduando em Direito do Trabalho.
Fonte: Revista Consultor Jurídico.